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série nada é de nOvo, 2023 - 2024

A Mulher Que Fazia Ninhos

Ovos fazem parte do universo discursivo e imagético historicamente ligado ao feminino. Formas arredondadas, férteis e reprodutivas reafirmam o feminal como algo da natureza, vinculado a um corpo pensado com base na maternidade. O ovo põe em conexão o interior do corpo com o exterior do mundo. Do mesmo modo, a casa também é tida como o espaço abarcador da aura feminina. Envoltório do mundo físico privado; uma fronteira entre o selvagem e o domesticado.

A estratégia da artista parece surgir de uma experiência corporal não apenas pensada pela ação mas sobretudo apurada pela ação. O ponto de partida é o corpo que carrega consigo uma bagagem de histórias latentes, invisíveis e em perpétua mudança. Histórias de encontros inesperados que podem ressoar com a experiência de muitas outras mulheres e aves. Seus fragmentos de elementos arquitetônicos arrastam consigo galhos, vasos, cipós, esponjas e edificam casas dentro da casa, constroem ovos com a casca voltada para fora, retorcidos e contorcidos. Há cuidado para que nada se quebre tampouco deixe palpável a vida que se faz para dentro.

Acúmulos e arranjos de formas imperfeitas oscilam entre a arqueologia dos fragmentos coletados e a cosmogonia construída pelo depósito de matérias que insistem em buscar alguma aderência entre si. Parece haver uma inquieta manipulação sempre a desafiar aquela que deveria ser a espessura apropriada para fixação nesse sistema de pesquisa por metamateriais. Os sólidos tornam-se fluidos por atuação mecânica e itens heterogêneos encontram sua estabilidade momentânea em estruturas de equilíbrio ou encaixe. Partículas sobrepostas aglutinam-se e assumem propriedades de um corpo contínuo. Sinto que existe um equivalente arquitetônico familiar ao mundo biológico para essas construções de espuma e cimento aqui decorrentes de uma interface borrada entre bolhas petroquímicas e a mecânica granular.

Naturalmente relacionamos seus ovos com alguns trabalhos das décadas de 60-80 no Brasil. Celeida Tostes, Anna Maiolino, Regina Vater, Clarice Lispector e Lygia Pape entre tantas outras mulheres geraram suas obra-abrigo, tornaram-se ovos e pensaram semelhantes movimentos de interiorização e ambiguidade. Durante o período da Bienal de Veneza em 2022 Marina Ribas desenvolveu uma série de intervenções loco-performáticas na qual instalava ovos nômades em diversas cidades. O zigoto-obra causa provocação em seu entorno e gera uma zona de indiscernibilidade, de ambivalência onde se confundem o humano e o animal - onde nos é permitido imaginar um espaço na fronteira onde essas categorias binárias se encontram. Assim experimentamos a instauração de uma ordem natural e zoológica ao mesmo tempo em que o desejo da artista invade as instituições de arte, os espaços privados; pousa nas deusas e musas que habitam áreas públicas.

As paisagens alteradas com a passagem de Marina ultrapassam as barreiras do mundo pessoal da artista, filiando-se a uma crítica feminista à categoria identitária Mulher. As repetidas manipulações deste símbolo permite-nos indagar se, ser feminina é uma atitude natural para as mulheres ou resultado de práticas culturais e sociais. Talvez o constante deslocamento geográfico de seus elementos questione uma vida linear, sem emoções, na qual o destino da mulher é casar, ter filhos e morrer - podendo todos esses acontecimentos ocorrer num mesmo lugar. Quando a artista deixa a casa e publicamente espalha seus ovos somos remetidas aos escritos de Deleuze. Seguindo as considerações do filósofo, o mundo é formado em dois tempos: nascimento e renascimento. Sendo essa segunda origem confiada aos humanos e não aos deuses.

No texto ‘Como criar para si um corpo sem órgãos’ no livro Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, de Deleuze e Guattari, os autores explicam que o ovo é contemporâneo por excelência, pois carrega-se sempre consigo. É tempo incluso. E, como seu próprio meio de experimentação ele implica num devir. Havendo “uma convergência fundamental entre a ciência e o mito, entre a embriologia e a mitologia, entre o ovo biológico e o ovo psíquico ou cósmico.”

Ao meu ver, o ovo surge como um elemento subversivo: aquele que pode criar outro mundo, revolucionar, transformar a ordem vigente. Partindo do discurso sobre o próprio ser, Marina Ribas tensiona as bases da construção da feminilidade, compreendendo o corpo como mais do que um simples recipiente. E ela o faz fora da esfera do privado: substitui por ovos aquilo que parecia fazer sentido e segue a imaginar uma historia menos obvia, para si e para o mundo.

Patricia Borges

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